O BALLET
Dentre as lembranças mais antigas dos tempos de infância, me vem à mente a época em que dançava imitando uma bailarina. Acredito que tinha uns 4 ou 5 anos de idade. Mas a causa definitiva, que levou ao encerramento da minha breve 'carreira', por assim dizer, foi aquele triste acontecimento ao levar um tombo na escada do armazém do tio Chico em Alegrete, resultando numa hérnia inguinal, que foi operada aos 7 anos de idade. Depois disso, a mãe passou a se preocupar demais comigo, temendo que tal infortúnio acontecesse novamente. Não podia correr ou fazer exercícios de ginástica no colégio por um bom tempo. O ballet seria uma coisa absolutamente inadequada para o meu 'estado', com todas aquelas ‘aberturas’ de pernas, que são executadas ao longo do curso. Era um exagero, é claro, mas este estado de coisas serviu para cultivar em mim certa tristeza em não poder realizar aquele velho sonho de infância. Mas as crianças logo se recuperam. Assim sendo, não dei tanta importância ao fato. Passaram-se os anos, e tudo o mais restou adormecido...
Quando voltei a pensar no assunto, foi na época em que estava trabalhando no Tribunal. Não me lembro em qual dos anos da década de 1980 que comecei a fazer aulas na Escola de Ballet Salma Chemale, que se localizava na Rua Mal. Floriano Peixoto, no centro de Porto Alegre. Entrei para uma classe de adultos, composta por alunas de diversas faixas etárias, as quais não se enquadravam num curso seriado normal. Neste período, tive a honra de conhecer a consagrada bailarina Salma Chemale. Ela já estava em idade avançada, mas, de vez em quando, gostava de ir até a nossa sala e dar alguns minutos de aula para a gente. Ela vinha nos ensinar o ‘port de bras’, alguns passos simples, dava ênfase à importância da postura, o ‘aplomb’, da bailarina e, vêm-me à mente agora, demonstrava como devia ser o movimento suave e ondulante da mão numa apresentação, imagem esta que se cristalizou na minha mente.
Salma Chemale no ballet A Princesa Moura, também conhecido como Scheherazade - 1930 |
Salma Chemale (*08/06/1918 Porto Alegre RS/+13/12/1990 Porto Alegre RS), filha do libanês Elias Monteiro Chemale e Guelhe (Gaeilia) Chemale, era casada com Julio Gomes Barcelos, com quem teve os filhos Ciro Elias e Denise. Salma foi aluna de Mina Black e Nenê Dreher Bercht, no Instituto de Cultura Física do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, na década de 1920, onde se ensinava ginástica rítmica. Neste mesmo instituto, estudara Lya Bastian Meyer (*23/01/1911 Porto Alegre/+18/11/2005 Porto Alegre), a qual, a partir das atividades da classe de coreografia, fundou a Escola de Bailados Clássicos na década de 1930, a primeira escola oficial de dança no Rio Grande do Sul. Lya Meyer formou uma geração de bailarinos clássicos entre os anos de 1930 e 1950. Dentre as alunas, destacaram-se Salma Chemale e Tony Seitz Petzhold, que, anos mais tarde, se tornariam grandes bailarinas e professoras de ballet. Salma também estudou em São Paulo e Buenos Aires. Seu primeiro espetáculo individual foi realizado no ano de 1948.
No ano de 1950, Salma abriu a sua própria Escola de Bailados Salma Chemale, na Rua Mal. Floriano Peixoto nº 520, no centro de Porto Alegre. Na década de 1960, a escola mudou-se para o nº 49, sobreloja, na mesma rua. Dentre as coreografias de maior sucesso da época, estavam Uiaras, A Lenda das Castanholas, Fantasia Árabe e Sinfonia Celeste. No decorrer do tempo, a escola já ampliava o ensino incluindo cursos de Ginástica Moderna e Rítmica, Dança Característica, Expressionista, Espanhola e Folclórica.
Salma Chemale (dir.) com sua filha Denise, candidata a Miss Porto Alegre no ano de 1955, representando o Clube Teresópolis Tênis Clube – Fonte: Jornal Diário de Notícias, Edição de 18/05/1955 |
Assim sendo, as atividades envolvendo a dança foram sendo repassadas ao longo dos anos às próximas gerações da família, pois a filha Denise e as netas Suzana, Leila e Márcia deram continuidade ao legado de Salma nos aspectos do ensino e da criação da arte da dança. Atualmente, o Ballet Chemale está estabelecido na Av. Plínio Brasil Milano, na cidade de Porto Alegre. Salma Chemale faleceu em 13/12/1990, aos 72 anos de idade, após sofrer um infarto.
Não gostava de matar as aulas, mesmo que estivesse com febre ou doente. Gostava tanto delas que, mal chegava em casa, anotava os exercícios que havia gravado na memória. Este treino é uma das coisas que mais se desenvolve no ballet. Não guardei estes manuscritos, nem lembro agora o nome da nossa professora, uma estudante de Direito, mas guardo na lembrança que era bem exigente. Naquela época, cheguei a convencer uma colega (deixo de revelar aqui o seu nome) a se matricular na minha turma. Quando dava uma folga, saíamos apenas com uma sacola contendo o material de aula. O tempo era contado no relógio minuto a minuto. Era um sufoco fazer render a nossa saída, demorando o mínimo possível... Com o tempo, a colega desistiu, mas eu segui um pouco mais adiante. Este tipo de turma de adultos não vai muito para frente, porque as pessoas, ou vão desistindo, ou vão entrando no meio do ano e, por causa disso, acabamos repetindo sempre as mesmas coisas... Mas nem tudo eram flores. Lembro-me com pesar da vez em que, fazendo um ‘temps de flèche’, quando o pé direito tocou o solo, um dos dedos ficou dobrado, e todo o meu peso caiu sobre este pobre membro... A dor foi muito grande, a ponto de caminhar com dificuldade e ter que parar na clínica de traumatologia, onde enfaixaram o meu pé. Depois disso, tive que tirar licença médica. Mesmo assim, eu não matava as aulas de ballet. Aguentava firme. Não contei nada à professora sobre o incidente. Assim era a minha total e irresistível devoção à dança!
A filha Fernanda (ao fundo) freqüentou a Baby-Class da Escola de Ballet Salma Chemale, aos 5 Anos de Idade – Março/1990 |
Depois de certo tempo, fiz aulas numa academia, ou melhor, num estúdio de dança de um ex-bailarino, na Av. Independência, nº 426, que hoje não existe mais. Atualmente abriga a Casa Frasca, um centro cultural e de eventos. A professora se chamava Raquel, uma bailarina que havia regressado de estudos feitos na Alemanha. Ela tinha ido para lá com o marido que também era bailarino, mas, por causa de problemas no joelho, o que deve ter motivado a sua dispensa, acabou voltando para o Brasil, mas o seu marido havia ficado por lá. Ela era muito exigente. Seguia a Escola Russa, mais precisamente o Método Vaganova. As aulas eram pela manhã, mas o pessoal faltava muito às aulas. O curso não durou muito. Lembro-me que, na casa onde funcionava o estúdio, havia dois gatos siameses que gostavam de se esfregar nas pernas da gente, deixando as nossas meias cheias de pelos...
Cheguei a fazer uma aula na Academia de Ballet Lenita Ruschel, situado no bairro Menino Deus, que usa o método Royal, mas havia dificuldade para formar uma turma de adultos, que deveria ter um número suficiente de alunos para começar. Assim, desisti do intento.
Lenita Ruschel – Foto: Site Ballet Lenita Ruschel |
Lenita Ruschel dirige a Academia de Ballet Lenita Ruschel, mantendo em Porto Alegre cursos de dança flamenca, street dance, dança contemporânea, jazz e ballet clássic há 60 anos. Iniciou seus estudos nesta cidade com os bailarinos e professores Rolla, Glaci Las Casas e Lya Bastian Meyer, estudou com Maryla Gremo no Rio de Janeiro e fez curso completo da Royal Academy Of Dance em Londres. Estudou dança moderna com Nina Verchinina, Esther Piragibe, Graciela Luciane, Ricardo Ordonez, Tony Abbot, Elza Villarino, Arthur Mitchel e outros.
Acabei conhecendo o Studio Maria Cristina Futuro. Foi um tempo muito legal. Fiz o Básico I em 1993, o Básico II em 1994, e freqüentei as turmas do 3º e 4º anos em 1995. Neste último ano, não cheguei a terminar, pois foi o ano em que nos mudamos e a mãe teve problemas de saúde. Foi um período bem atribulado. Lembro-me que, em 1993, quando o meu pai faleceu, apesar da minha tristeza, fui fazer aula, mas não contei a ninguém o que havia acontecido para não acabar chorando. Aquela atividade me dava forças para superar o sentimento de luto. Mas as músicas pareciam ser mais melancólicas do que nunca. Sentia saudades de meu pai...
No Natal de 1993 me dei de presente sapatilhas de ponta da marca Cecília Kerche. Naquele tempo, trabalhava como tesoureira na creche de nossa Associação, onde fazia parte da Diretoria. Podia fazer as aulas de manhã tranquilamente e algumas aulas de pontas à tarde. Mas as coisas não eram tão simples assim. Enfrentei olhares meio debochados de certas meninas, discriminando-me, tanto pela minha idade como pelas minhas gordurinhas... Mas o pessoal da equipe de professores sempre me deu muita força. Eles percebiam como eu era esforçada e responsável. A Maria Cristina sempre foi muito exigente e competente. A sua filha Patrícia seguiu o caminho da mãe, tornando-se uma excelente bailarina. No começo, tive aulas com a Flávia P. do Valle, depois com a Sílvia Britto Velho e com a Cíntia Neto. Poucas vezes tive aulas com o Alexandro Reis, um excepcional bailarino. Lembro-me com carinho da Dona Merecilda Futuro, que trabalhava na Administração. As antigas fitas de vídeo, com as apresentações da Escola em 1993 e 1994, não estão mais aqui para relembrá-las, mas ficaram as anotações das aulas teóricas, como as do pequeno dicionário de ballet, anatomia, grandes ballets, personalidades do mundo do ballet, teoria musical, história da dança e maquiagem...
As professoras daquela época (da esq. p/dir.): Cíntia, Flávia, Patrícia, Maria Cristina e Sílvia |
Alexandro Reis – 2012 – Foto: Ballet Maria Cristina Futuro |
Cheguei a fazer aulas de pontas, o que foi bem dolorido, mas ia com os dedos preparados, enrolados em esparadrapos e, com a ajuda das ponteiras, até que dava para agüentar firme. Legal foi a nossa montagem, como exercício de aula, do ballet A Bela Adormecida. Eu era a Carabosse (a feiticeira), e também fiz um bonitinho Pássaro Azul, com uma pequena coreografia idealizada por mim. Comprei até um adereço para a cabeça com plumas azuis na cabeça. Cada aluna criou a sua ‘fantasia’, sendo que eu fiz a varinha mágica com purpurina para a colega que fez o papel da Fada Lilás. Criamos os passos e os ensaiamos sozinhas, para depois apresentar o espetáculo para a professora Cíntia. Ela adorou... A foto foi feita durante o ensaio da nossa montagem do ballet A Bela Adormecida, como o ‘Pássaro Azul’ – 1995.
O Ballet Maria Cristina Futuro foi fundado em 1975, com sede na Rua Dona Laura, nº 556, em Porto Alegre RS. A escola segue o Método Vaganova. Este método foi desenvolvido pela bailarina russa Agrippina Vaganova, que incorporou ao ballet clássico russo aspectos vigorosos e de forte expressão corporal (in Princípios Básicos do Ballet Clássico, de Agrippina Vaganova). Maria Cristina foi aluna da professora Salma Chemale, que, por sua vez, estudou a técnica do ballet com a professora Lya Bastian Meyer, já referida nesta postagem.
Durante este último período, comprei vários livros, fitas de vídeo, depois substituídas pelos DVDs, além de CDs com músicas de ballets famosos. Houve uma época em que eu e minha filha seguidamente íamos ao teatro ver apresentações de ballets. Para mim foi emocionante assistir a Ana Botafogo dançar ao som da orquestra da Ospa no antigo Teatro Leopoldina, depois transformado no Teatro da Ospa. Lembro-me que ela fez outra apresentação no Teatro São Pedro, com músicas tocadas ao piano, que foi simplesmente fantástica! Ao longo de poucos anos assistimos diversas companhias, tanto brasileiras como estrangeiras. Este foi um período mágico... O ballet é uma arte que me toca profundamente. Aliás, como nenhuma outra coisa nesta vida conseguiu fazer. Acho que, se pudesse, trocaria toda esta minha existência pela de uma eterna bailarina, ou seja, aquela que nunca envelhece, que tem sempre o corpo ideal para a arte, dançando com uma técnica perfeita, magistral, quase tocando o portal divino. Uma história parecida com Sapatinhos Vermelhos, mas sem o final trágico...
As histórias dos ballets quase sempre são tristemente belas. Aliás, são como a vida, cheia de acontecimentos que guardam a sua beleza efêmera e triste. O objetivo maior da dança não deve ser o da busca da riqueza ou da fama. Aliás, a carreira de bailarino é fugaz, sendo que pouquíssimos conseguem brilhar até o final, como Nureyev ou Margot Fontaine. O importante é conseguir conquistar os corações das pessoas, proporcionando momentos de encanto e felicidade, elevando-os além da realidade rotineira do dia a dia. Acho que este é o sentido mais nobre da dança, que nunca deve ser esquecido...
Para finalizar a postagem, achei este vídeo bem legal sobre a jornada em busca do sonho de Christine White em se tornar bailarina aos 50 anos, chamado ‘O futuro me diz vem... ’.
EXPOSIÇÃO: MODERNAS ERAM ELAS – A DANÇA NA PORTO ALEGRE DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX – DE 22 DE SETEMBRO A 29 DE OUTUBRO DE 2022
Este importante evento foi realizado dentro da programação cultural da Prefeitura de Porto Alegre, alusiva aos 250 anos desta cidade. A exposição foi uma realização do Centro de Dança da Secretaria Municipal da Cultura e Economia Criativa, com apoio do Goethe-Institut Porto Alegre, Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo, Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho e Centro de Memória do Esporte/UFRGS. Dentro da programação, estava incluída uma Mesa Redonda, tendo como título “Por que elas eram tão modernas?”, assim descrita: “O tema da mesa será a contribuição das artistas Lya Bastian Meyer, Irmgard Hofmann, Mina Black, Nenê Dreher, Salma Chemale e Tony Petzhold para o desenvolvimento da arte da dança na cidade, bem como os paradigmas de comportamento feminino que ajudaram a modificar no contexto da Porto Alegre da época.” Logo após, teve o início o recital intitulado “Por que elas dançam?”, com a bailarina Luciana Paludo e o pianista João Maldonado.
Visitei a exposição no Goethe-Institut e trago nesta postagem algumas imagens deste belo evento do mundo da dança.
Programação do evento e o painel com a pergunta “Quem te ensinou a dançar em Porto Alegre?” Os bilhetes dos participantes revelam as suas respostas |
Linha do tempo da dança em Porto Alegre |
Painéis homenageiam as quatro principais bailarinas em Porto Alegre |
Biografias e programas de espetáculos de Irmgard Hofmann Azambuja e Lya Bastian Meyer |
Biografias e programas de espetáculos de Salma Chemale e Tony Petzhold |
Painéis, vitrines com objetos e fotos relativos ao ballet e áudio-visual com o depoimento da bailarina Lenita Ruschel |