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quinta-feira, 24 de abril de 2014

Família Schuster - Lotes Coloniais


Fontes:
1-Mapas de Colônias Alemãs e Italianas no Rio Grande do Sul – Otávio Boni Licht e Colaboradores, Instituto de Informática da UFRGS.
2-Google Maps



IMIGRANTES FRANZ ANTON SCHUSTER E ANDREAS SCHUSTER

No recenseamento realizado entre os anos de 1847 e 1849, nas antigas colônias de São Leopoldo, constam os nomes das famílias dos irmãos Andreas e Franz Anton, que moravam ao sul da antiga Picada Dois Irmãos, numa localidade denominada Travessão. As duas famílias habitavam a colônia de nº 3 deste lugar. Franz Anton ocupava a metade do lote e Andreas residia na outra metade. A parte sul do lote situa-se na atualidade próxima ao norte de Kephas, um bairro de Novo Hamburgo RS.



A localização do Lote nº 3 do Travessão, que pertenceu aos irmãos Franz Anton e Andreas Schuster


Vista da parte norte do Lote nº 3


Vista da parte central do Lote nº 3


Vista da parte sul do Lote nº 3



IMIGRANTE MARIA ANNA SCHUSTER


No mesmo recenseamento (registros do nº 913 ao nº 918), consta que Maria Anna Schuster, casada com João Baltazar Severin (Sefferin), morava com sua família no chamado Campo Ocidental, que corresponde atualmente aos territórios dos municípios de Estância Velha e Portão. Obs.: nesta listagem do recenseamento não constam os números dos lotes em que os colonos residiam.



Representação da antiga colônia de Campo Ocidental



IMIGRANTE CATHARINA PHILIPPINA SCHUSTER


Catharina Philippina Schuster, casada com João José Fritsch, vivia com a família vivia em São José do Hortêncio, sendo possuidores da terça parte do Lote nº 5. Este lote tinha como área total 68,5 hectares. Os demais proprietários do lote eram Christiano e Conrado Lamb.



O antigo Lote Colonial nº 5 em São José do Hortêncio


Obs.: na realidade a frente do lote se alinha com a Av. Mathias Steffens, deslocando-se mais para a direita, enquanto que os fundos do lote se alinham com a via existente no mapa, deslocando-se da mesma forma no mesmo sentido.





quinta-feira, 17 de abril de 2014

Família Schuster - A Viagem de Navio


RELATO DA 3ª VIAGEM DO NAVIO CAROLINE TRAZENDO IMIGRANTES PARA O BRASIL


A família Schuster embarcou no porto de Hamburgo com destino ao Brasil na data de 16/11/1825, no navio Caroline, com cerca de 200 passageiros, que correspondia à oitava leva de imigrantes para o Brasil. O navio Caroline fazia a sua terceira viagem com este objetivo, o qual navegou por 103 dias para chegar ao Rio de Janeiro em 26/02/1826. O capitão e também proprietário do navio chamava-se Jakob Von Der Wettern e o comandante de transporte Carl Seidler. Este navio transatlântico, como todos os navios empregados no início do século XIX para cruzarem o Oceano Atlântico, era um veleiro de três mastros. O texto a seguir relata a 3ª viagem do Caroline.


Fonte: Dez Anos no Brasil - Carl Seidler
Obs.: as fotos são apenas ilustrativas (Fonte: Internet).


“Havia três navios a partir para o Rio de Janeiro; agradou-me o Carolina, comandante von Wettern; um bonito trimastro, que calava no mar e bracejava alto nas nuvens. Acertamo-nos em 26 luíses. Misterioso e indolente, a bordo larga a flâmula de variegadas cores, ali estava também, qual tentadora sereia que faz por encantar os cavaleiros errantes, um cargueiro, atestado, no qual me prometiam passagem grátis. Mas eu conhecia o Major Schäffer, o moderno Robinson, que vendia o sangue de seus conterrâneos, à procura de um monte de ouro e de um canavial de açúcar, e que tão bem soube explorar para os seus fins egoísticos a fúria aventureira da mocidade alemã.



O Caroline parte do porto de Hamburgo em 16/11/1825


Foi Schäffer quem tosquiou (Nota do Tradutor — em alemão, há um trocadilho aí, considerando este nome escrito com um só f, que então significa pastor de ovelhas) tantas ovelhas inocentes para tecer um pelego quente para si próprio; Schäffer, o Don Quixote político que sucumbiu vergonhosamente na luta contra o moinho de vento de ideias libertárias não amadurecidas o qual, depois de viver alguns anos numa ilha deserta do Oceano Pacifico, depois de intitular-se paxá turco, qual renegado da fidelidade e da fé, depois de tentar embalde seduzir os potentados da península e da Rússia para os seus planos aventureiros de colonização, finalmente se vendeu a D. Pedro, com couro e cabelo, como a um amo adequado; Schäffer, o agenciador sem consciência, para quem palavra e assinatura não eram sagradas, Schäffer, o moderno vendedor de almas, que procurou introduzir na Alemanha, não sem êxito, em sentido oposto, o proibido tráfico de negros.


No desenrolar da narrativa há de reconhecer-se que nessa descrição não vai palavras de exagero, pois que já nesse tempo, sendo eu apenas adolescente, já julgava acertadamente o Major von Schäffer. Não me move nenhum preconceito cego, nem ódio pessoal, pois jamais estive em qualquer situação de subordinado a ele; minha entrada como oficial ao serviço imperial brasileiro, como membro duma legião alemã no novo mundo, teve lugar sem sua intervenção ou recomendação, por ordem especial de D. Pedro. A minha convicção a respeito dele nasceu num período muito posterior, e será explanada num capítulo próprio, referente ao problema da emigração e da colonização, especialmente a respeito da colônia de São Leopoldo.

 
A 16 de novembro levantamos ferros e meu coração ficou aliviado, pois meu espírito ainda não sofria enjoo do mar, nem haviam sucumbido minhas esperanças. Como uma flecha singrava a alegre Carolina, com seu peito levantado e as bordas largas, pela maré montante, qual tímida menina que o namorado persegue. Em breve estávamos na dianteira dos outros dois navios. Entretanto o vento favorável se tomara furacão; pelo menos assim me parecia, mas o capitão e os marinheiros garantiam que era apenas um temporal. No mar e de noite, um temporal sempre é algo de imponente; sem querer, pensa-se no versículo da bíblia: “O espírito estava sobre as águas”. 



O veleiro Caroline enfrenta a tempestade


É espetáculo singular a festa das bodas entre as ondas azuladas do Elba, tangidas por forte vento, e o mar do Norte. Soberbas elas, elevavam-se com silenciosa dignidade em seu vestido de noiva feito de espuma, cabeça meio inclinada de pudor, olhos chorosos aureolados dum véu de caniços, para depois, ardentes de amor, ao amplexo do amante mais forte deixarem-se cair no grande, alto e fofo leito do mar intérmino. Cada vez mais subiam as vagas, as gaivotas voavam em torno de nós com suas profecias de mau agouro, e até o prático que devíamos desembarcar em Cuxhaven temia não poder tocar em terra, com a violência do mar. É realmente de admirar a ousadia com que esses homens afrontam o elemento enraivecido apenas em seu barquinho raso com dois remos e um pedacinho de pano de vela; e não menor é a admiração que merece a perícia com que na mais violenta tempestade, submergindo e emergindo como cisnes, se tornam verdadeiros senhores livres do mar.



Cuxhaven situa-se na foz do Rio Elba e pertenceu a Hamburgo até o ano de 1937


Logo apareceu o navio do prático; baixou-se um bote preso ao navio por forte cabo e o esforço físico de dois homens o arrastou em menos de duas horas para bordo do nosso trimastro. O prático saltou para o bote e em poucos minutos os corajosos pilotos tinham alcançado o porto seguro; e nós, a todo pano, tanto quanto possível obedecendo à bússola, rumamos para a terra das esperanças e sonhos, o Brasil. A tempestade enfurecia-se cada vez mais, porém não era inconstante, e o tempo não mudava de cor; mas a sua cor era melancólica, peculiar ao inverno e às nuvens de neve quando pela primeira vez no ano vão descer com geada e gelo. Despertava o mundo de Ossian e singulares vultos de névoa perpassaram em cavalos fumegantes; a fantasia é um pássaro que voa mais depressa que o mais veloz navio.

 
A ilha de Helgoland, a Santa Helena do Mar do Norte, emergiu com suas paredes rochosas nuas, e as ondas arremessadas mais ao alto cantavam desarmonicamente as baladas de navios soçobrados, narravam as fábulas da dominação dinamarquesa e inglesa. Muito eu tinha ouvido falar de banhos de mar e prelibado o prazer de experimentar seu maravilhoso poder curativo, mas um trimastro na tempestade não é adequado a navio banhista e para um neófito do mar como eu. 



Helgoland é uma ilha alemã situada no Mar do Norte, distante duas horas de barco desde a foz do Rio Elba


Finalmente calaram-se os tubos sonoros do órgão da natureza, como que extenuados. Durante oito dias só vimos o sol, como em má câmara escura, embarcado e sem raios. O furacão recuperou as forças e tornou a moer a sua velha melodia predileta, que a todos nos tirava as vistas e o ouvido. Era uma dança divertida; a água do mar alcançava o cesto da gávea e os marinheiros agarravam-se aos cabos para não serem arrastados às ondas. Juntava-se a isto o enjoo do mar, o velho, inexorável monstro das águas, o pesadelo náutico, que não conhece compaixão nem consciência. Foi um longo sonho, horroroso, do qual despertamos pouco a pouco, uma lenta agonia, acompanhada dos símbolos da ressurreição em convulsões vomitivas. Nesses dias não sem fim tudo a bordo sonhava, enquanto o navio calado e morto, como o espectro holandês dos mares meridionais, cortava as ondas sem sinal exterior de vida.

 
Éramos quatro passageiros no camarote: dois comerciantes, o tenente Ottmer e minha pessoa. Todos moços e mais aquinhoados de esperanças do que de bens terrenos. Quatro cavaleiros errantes da moderna Távola Redonda da era da restauração alemã. Todos nós especulávamos, ou sobre paus de tinturaria, areia diamantífera ou couros, sobre a glória, felicidade militar e galantes aventuras. Mas, ai! Quando se está com enjoo do mar esquecem-se todos os sonhos, abandona-se tudo que se preza de belo e magnífico; parece que a todo o momento a alma vai escapar-se; ela se corporifica e padece fisicamente; e o espírito comercial desaparece.

 
No nono dia finalmente levantou-se a cortina de nuvens, o sol ressurgiu, e em vez de estarmos no estreito de Calais achávamo-nos a pouca distância da costa norueguesa, da qual reconhecíamos claramente os rochedos piramidais. Estabelecera-se súbita calmaria, que durou quase tanto como a precedente tempestade; o frio aumentou medonhamente e não tínhamos aquecimento no camarote. Em tais circunstâncias o navio torna-se deveras um presídio; o oceano o é a Bastilha, na qual nos tocou minguado cárcere e nossos companheiros de sofrimento têm que se tornarem nossos irmãos, pois partilham conosco as mesmas esperanças, as mesmas tribulações, o mesmo tédio, as mesmas horas de desespero e de risco. Não há sair das paredes do cárcere. A fantasmagoria só se altera com as cores cinzentas dum presente obscuro, sonolento; ainda não se conhece a sentença dos elementos, ainda não se sabe se há de viver-se nem como se morrerá.



Fiordes da Noruega


Nota da Pesquisadora - o percurso foge do que seria esperado: a passagem pelo estreito de Calais, alcançando o Canal da Mancha. O navio voltaria à rota muito tempo depois. Teria o Capitão do Caroline perdido o rumo?


O capitão, valente homem do mar com aspecto de Falstaff, ainda no Elba nos prometera que dentro de uma semana estaríamos na ilha da Madeira debaixo de bananeiras e ao chilrear dos canários, a saborear fartamente o legítimo Old Dry, que antigamente Londres conhecia. Entretanto, já contávamos dezesseis dias de mar e estávamos longe do canal como nunca. Passamos todo o mês de dezembro e o começo de janeiro sob o mais terrível frio no mar do Norte e jamais esquecerei a pequena árvore de Natal que então erguemos, com velazinhas e lentejoulas, nem da noite de São Silvestre (N. do T. — 31 de dezembro), que primeiramente celebramos com grog e canções alegres, e depois em silenciosa, sincera devoção. Só a 12 de janeiro de 1826 logramos passar o estreito de Calais; reconhecemos claramente os dois faróis que montam sentinela nas duas costas; em 36 horas estávamos outra vez em alto mar e tínhamos dado adeus à Europa, talvez para sempre. 



A localização de Calais na costa francesa e da Inglaterra na outra margem


É uma linha divisória na vida do homem, aquele dia em que vê fundir-se com o horizonte longe atrás de si a terra com suas elevações, e ele mesmo passa a ser peregrino do infindo oceano. A criação perde um elemento - o mais belo de todos - a terra verde, banhada de sol, onde foi o nosso berço, e em cujo regaço repousa o pó de nossos antepassados. Do alto da gávea o marinheiro apregoa o desaparecimento da terra; o oceano é nossa mãe amorosa! Serenamente, à luz do sol, desliza o navio para dentro de um mundo de nuvens e água, ao encontro da longínqua invisível meta: imagem da vida humana. Ainda sinto vivas as impressões que então dominaram meu coração, contudo já no outro dia eu ansiava por tornar a ver terra, montes e matas; pois a contemplação do oceano traça uma barreira firme, intransponível à fantasia, e a fantasia - centelha humana de Prometeu - é a única entidade terrena que não tolera barreiras. 


A vista do oceano é magnífica e grandiosa, como um livro luterano de orações, com bons cânticos e as bênçãos matinais e vesperais. Mas quem gostaria de lê-lo sempre? O mar tem sempre algo melancólico: com a calmaria parece um cadáver, com a tempestade uma cova hiante. Livres do enjoo do mar, este nos deixara, entretanto, um mal remanescente, a saudade — a febre paroxística da recordação. 


Finalmente, apareceram-nos as ilhas do Cabo Verde (sic), quais verdadeiras estrelas salvadoras; vimos mais de perto a de S. Antônio. Depois de tantos dias e noites, cumprimentávamos novamente pela primeira vez a terra que, com suas cadeias de montanhas subterrâneas e ramificações antediluvianas, constitui o esqueleto sólido da nossa terra firme comum. Estas ilhas são na maior parte rochedos nus, fabulosos, que tão erradamente quanta a Groenlândia (N. do T. — de “Groen”, em alemão “grün”, verde; e de land, terra) derivam seu nome verde primaveril do velho lucus a non lucendo (sic); em poucos sítios a pedra é revestida de virentes (sic) leivas, predomina o reino mineral. A vegetação é rara, mas brilhante; e a mais insignificante flor parece ao fatigado mareante incompreensível maravilha divina, que de fato é. 



O autor deve estar se referindo a Santo Antônio, uma freguesia da Ilha da Madeira


Novamente alto mar, novamente sem terra, com vento favorável, tédio e distrações, até ao cinto virginal dos dois hemisférios. Tornava-se nossa viagem cada vez mais agradável. O céu era gárrulo e o mar, com o qual estávamos agora mais conhecidos e amigos, desvendava aos nossos olhos a vida misteriosa que sua profundeza encerra. Ultimamente era meu maior prazer banhar-me no oceano e, como mergulhador ousado, fazer pequenas excursões de descobrimento no domínio dos peixes e dos corais. Certa manhã preparava-me para o mesmo, quando passa correndo por mim um marinheiro, a gritar — “Os anzóis! os anzóis!” Perguntado para que queria anzóis, respondeu-me: “Então, o Senhor não está vendo aquele bicho de lombo liso prateado? Já por duas vezes esbugalhou os olhos cá para dentro; mas vamos preparar-lhe um almoço”. Depressa me debrucei na amurada e vi, com não pequeno susto, um tubarão pelo menos de dezesseis pés de comprido, que, escoltado pelo seu piloto, chispava com as suas grandes nadadeiras brilhantes das costas e da cauda, como uma gôndola meio submersa. Não demorou que diante da garganta escancarada do bicho pendia no anzol preso a uma corda um pedaço de toucinho de duas libras; e o tubarão não apanhava a isca, porque o vento favorável premia, fortemente as nossas velas. Os fiéis pilotos (*) sempre lhe mostravam o bom caminho; isso durava horas, quando repentinamente a majestade aquática, qual Cleópatra voluptuosa, deu formidável salto de costas; alvejou a barriga no meio da espuma borbulhante, os cientes afastaram-se com ruído e a isca foi devorada. Penosamente sete homens puxaram para bordo a fera aprisionada; nosso trimastro estremecia convulsivamente com as suas rabanadas, que não cessaram enquanto não foi esquartejado a machado e seu coração arrancado do corpo. 


(*) Nota do Autor: A maioria dos meus leitores hão de conhecer já estes pilotos, presumo, da história natural ou de descrições de viagens. Entretanto, parece-me não destituído de importância acrescentar aqui algumas palavras sobre esse animal singular. Nunca vi tais peixes maiores do que de um pé a um e meio; sua cor é geralmente castanha e o dorso é raiado de faixas largas, escuras. Eles comprovam na água com especial instinto o princípio do despotismo, pois o tubarão, o tirano dos mares, o nunca saciado corsário das regiões meridionais, serve-se deles em suas expedições de rapina como de fiéis escravos e guias. O voraz tubarão é uma das rodas mestras na grande máquina de destruição e reprodução da natureza; ele devora tudo que pode abocanhar, exceto os pequenos, incansáveis pilotos, que sem serem incomodados brincam com suas respeitáveis barbas. Verdade é que estes bichinhos são muito rápidos e ágeis no nadar, entretanto seriam aos milhares vitimas de seu dominador, se este não fosse visceralmente ilimitado egoísta. Em todos os elementos a natureza é a mesma.


Era a primeira inspeção anatômica a que eu assistia. Como todos sabem, não é só o porco, mas também o tubarão amostra da constituição analítica da natureza humana; essa verdade não é muito lisonjeira, mas é evidente. O animal ainda vivia, apesar de estar com a cabeça esmigalhada e a barriga aberta; seu coração ainda pulsava quinze minutos depois de estar arrancado. Ganham em verossimilhança os milagres do galvanismo. Quando será finalmente desatado o nó górdio? Pois a história natural, em seus departamentos recônditos, é mais escura e indeterminada do que a história do mundo.

 
O herói desse pequeno episódio “da fábula dos mares”, além dos pilotos ainda trazia quatro peixes mamíferos como estimados camareiros em seu séquito, pendentes nas partes moles de seu corpo, e que não o largaram nem depois de aprisionado e condenado à morte. Nestes peixes de forma cônica e formação cônica (N. do T. — O autor tem acentuada predileção pelo jogo de palavras, de grafia igual ou quase igual) predomina a cor preta; são do tamanho do arenque e têm na parte inferior da cabeça, lisa, como um espelho, diversas aberturas polipiformes (forma de pólipos), que a tudo se atracam. 


O mar, como boa dona de casa, tem sempre provisões de tudo; há muita coisa mole e muita coisa angulosa; nunca falta um ralador. E o ralador raia e é ralado: esta é a única harmonia verdadeira da existência: cócega animal é o segredo da conjugação entre o tubarão e os peixes mamíreros (o autor usa linguagem figurada: animais sob a proteção e alimentados pelo protetor). É curioso que o tubarão com plena razão cognominado de a hiena do mar, nunca se apresenta sem seu numeroso séquito. Alguns dias depois apanhamos mais dois peixes da mesma espécie, e ainda mais outros até o equador, ao todo seis. Um deles, ainda bem novo, nós o comemos; mas achamos a carne seca e má. De gustibus non est disputandum (sic). Não precisarei acrescentar que desde a primeira dessas pescas perdi o gosto pelo banho de mar. 


A 8 de fevereiro o capitão tomou a latitude e declarou que atingíramos a linha. Fabulosamente travestidos, marinheiros penetraram logo em nosso camarote, sob a direção do contramestre, para nos felicitar a nós quatro passageiros, que ainda nenhum jamais passara a linha. Ficaram satisfeitos com a gorjeta que nos filaram; com algumas piastras espanholas compramos a dispensa do grande batizado que era celebrado no convés, com imensa galhofa, pelos anabatistas mascarados. Tal festa é demasiado conhecida para que eu a descreva de novo; é a festa do mar no mar, a páscoa de uma esperança, já semirrealizada. Como curiosos assistimos à cena. A água corria, aos baldes em cascatas e fontes; ficamos respingados pela incessante chuva a cântaros, e em breve já não éramos espectadores da comédia: então passamos a mão nos baldes e com as melhores energias pagamos o bem com o bem.

 
“Muitos gracejos, com risos de estouro! 
Soubessem-no as gerações vindouras!” 


A brincadeira continuou até as três da tarde, quando o sino tocou à refeição. Nada aí se poupou do que ainda havia de bom e belo a bordo; descerrou-se para nós uma louvada terra de sonhos da idade de ouro, em que os rios eram de mel e vinho, em que só havia lágrimas de felicidade e de recordações e em que se confirmava in facto (sic) a hipótese tanto tempo descrida da eterna mobilidade da terra. 


Semelhante dia recorda-se por longo tempo, depois de dissipada a consequente dor de cabeça; pois ele quebra a monotonia da viagem marítima, fica marcado como folhinha vermelha no calendário da nossa peregrinação terrena. Alcançou-se o equador e pensa-se que já é o termo. É que depois de longa incerteza alcançou-se uma linha que serve de gigantesco marco miliar no oceano; sabe-se agora exatamente em que altura do globo terrestre se está, a partir da qual se pode determinar em graus matemáticos a situação da pátria distante e a da próxima, desconhecida terra firme das fantasias juvenis, alcançada com tantos sacrifícios. 


Mas o homem do mar teme o equador tanto quanto o ama; pois costuma deparar aí com duradoura calmaria. Também nós aqui ficamos parados quatro dias, sem a mais leve brisa, sem a mínima onda. O único episódio desse espaço de tempo idílico foi a morte dc urna vaca, que ia de presente para o cônsul geral austríaco Scheiner. Ela se engasgara com um arenque, que o contramestre lhe dera, como panaceia contra repentinas cólicas de ventre. Muito sentimos essa perda, pois de futuro tivemos que tornar o nosso café sem leite (*).


(*) Nota do Autor - o uso do café só no fim da guerra cisplatina tornou-se regulamentar na nossa marinha de guerra; quanto ao exército, o café ainda não figurava nas tabelas de 29 de abril de 1883. Em 1827 o uso do mate chimarrão era de uso generalizado entre as tropas milicianas do Sul. 

 
Que formidável mudança rápida do extremo frio para o mais premente calor! No mês de janeiro no mar do Norte, não longe, do velho Thule, em fevereiro sobre o equador! No quinto dia suave brisa armou as velas e assim penetramos na outra metade da terra. Desde então o vento se manteve favorável e foi crescendo de intensidade à medida que nos afastávamos da linha. 


O navio Caroline chega ao seu destino


A 24 de fevereiro, pela manhã, o capitão nos deu notícia de que, se seus cálculos não falhassem, ainda hoje avistaríamos terra. Ficamos tomados de medrosa expectativa e quando às duas horas da tarde se ouviu do cesto da gávea o brado alegre de “Terras” muitos corações a bordo se alvoroçaram. De olhar firme e brilhante de alegria, todos alongavam a vista para o longínquo horizonte, transparente, a esperar com tímida impaciência o momento em que correria o reposteiro e começaria o drama da surpresa. Assim passou meia hora, que contamos minuto por minuto; eis que de repente surgem aos nossos olhos, clara e nitidamente, as elevadas cadeias de montanhas do novo mundo. Nossa alegria foi ilimitada, se bem que soubéssemos que ainda não seria para hoje a nossa chegada ao porto de destino; tínhamos, porém, o objetivo à vista; sabíamos que a criação possuía também para nós urna terra firme e podíamos erigir sobre aquelas gigantescas massas rochosas os castelos aéreos de nossas mais lindas esperanças.
 

Ao mesmo tempo avistamos diversos navios que a todo pano demandavam o porto do Rio de Janeiro, nenhum dos quais, porém, podia contar que entrasse antes da noite. Todos, silenciosamente resignados, tivemos que bordejar espera da madrugada. Foi linda a noite, fulgurante, corno em terra não se conhece; não tivemos sono; assentados ao convés, sonhávamos acordados e em conversação sem palavras interpretávamos uns aos outros os nossos sonhos de futuro. Veio a aurora; mas não nos trouxe a satisfação de nossos mais ardentes desejos. O vento rondara e vimo-nos obrigados a bordejar diante da barra todo o dia e a noite seguinte. 


Singular aventura, que aqui nos sucedeu, desviou os nossos pensamentos e cuidados para outro objeto, não muito agradável. Um navio de guerra de três mastros, que desde algumas horas fazia os maiores esforços, e bem sucedidos, para nos alcançar, por fim, com três disparos nos ordenou que hasteássemos a bandeira, O nosso capitão não quis saber disso, não respondeu à pergunta assim formulada, e indiferente continuou a velejar; mas eu bem notei que o Carolina com uma pequena mudança de direção tomou mais vento e frechou para o alto mar. A fragata inimiga seguiu-nos e içou a bandeira preta e branca de Buenos Aires. Imagine-se o nosso susto! Aquele país estava em guerra com o Brasil e estava muito em moda o corso, essa mancha de ferrugem no escudo da nossa cultura a qual tanto gostamos de alardear. Teríamos a mínima esperança de poder enfrentar honrosamente a luta contra um corsário bem guarnecido e bem artilhado? O prolongado idílio da nossa viagem pelo oceano sossegado deveria terminar em sangrenta catástrofe? Penso que na maioria não nos achávamos aptos para semelhante fim heroico. 


Sem mais demora, o Carolina apresentou-se como hamburguesa e com honesto orgulho ostentava sua bandeira. Parece que o suposto corsário refletiu; deixou visivelmente de nos perseguir e içou a bandeira francesa (N. do T. — é exato que os corsários se atreviam até a barra do Rio de Janeiro; como também é exato que de um lado e de outro não se trepidava de içar a bandeira de terceira nação. Já na campanha naval da nossa independência, o intrépido Taylor, na perseguição dos portugueses em retirada da Baía para o Tejo, usou desse expediente e em face de reclamação diplomática de Poutugal à Inglaterra teve que ser, embora só por algum tempo, dispensado dos serviços ao Brasil). Tranquilizamo-nos; mas nunca se pode saber qual fora a intenção do comandante da fragata com esse ataque simulado; apenas mais tarde tiramos a limpo que era realmente navio de guerra francês, que muito tempo esteve aqui fundeado. Evidentemente houve política, em jogo, e a política tornou-se ultimamente manto de carbonário ao ombro de anão grandiloquente: ela encobre e desculpa tudo. Fora de divida que é condenável perseguir de tal maneira navios mercantes.

 
O dia 26 de fevereiro, aos 103 dias de minha partida de Hamburgo, seria enfim o fecho da longa travessia marítima. Levantou-se vento à feição e todos os navios que estavam à espera, cujo número entrementes subira a dez, entraram pesada, mas ràpidamente, quais aves migratórias, cansadas e saudosas, na louvada meta de seus desejos. Alcançáramos o objetivo, mas o encantamento desse instante pelo qual de antemão tanto nos havíamos alegrado não se manifestou, pelo menos para nós quatro passageiros, que passáramos o Érebo para alcançar o Orcus. Mil sentimentos desencontrados enchiam-nos o coração. É que estávamos chegados ao lugar onde contávamos tirar a sorte grande na loteria duma sina funesta. A qual de nós tocaria nessa loteria um bilhete branco?... Não podíamos todos ganhar. Demais tínhamos sabido tanto do Brasil, de leitura ou de ouvir dizer; ora no-lo descreviam como a mais rica e magnífica de todas as terras, ora como a mais pobre, miserável, e quanto ao espírito de seus habitantes como a mais excomungada. Onde o ponto da verdade, no qual se tocam os dois extremos? Qual a constelação que havia de assinalar a sorte da nossa vida? Cada vez mais claras emergiam as enormes cadeias de montanhas e os penhascos da costa brasileira, apresentavam-se menos esbatidos; estávamos perto do porto do Rio de Janeiro.”



Os passageiros do Caroline chegam à Praia Grande (Niterói) - Tela de Henry Chamberlain


Nota da Pesquisadora - Os colonos que chegavam ao Rio de Janeiro ficavam alojados em galpões na Praia Grande, hoje Niterói, aguardando a viagem de ida para o sul. As viagens para Porto Alegre, por exemplo, eram feitas nos barcos de dois mastros. Aqui chegando, eram recepcionados pelo Presidente da Província de São Pedro, ficando alojados no extremo sul do porto, no prédio do Arsenal de Guerra, na proximidade da atual Usina do Gasômetro. Para o transporte até São Leopoldo, eram utilizados lanchões toldados, movidos à vela e remo. Os colonos chegavam à Feitoria do Linho-Cânhamo em carretas, estabelecimento fabril que foi desativado pelo Governo Imperial, de onde partiam para tomar posse de seus lotes.



As sumacas possuíam dois mastros e velas retangulares ou triangulares, transportando cargas e passageiros


Após alguns dias, a família Schuster embarcou na data de 23/03/1826 num barco costeiro, a sumaca de nome Argelino, rumo ao Rio Grande do Sul. Era uma pequena embarcação veleira de dois mastros. O proprietário deste costeiro era Manuel José Pereira Graça e seu capitão chamava-se Victoriano José Pereira. A passagem custava 10$000 rs e eram pagos ao Sr. Francisco Antônio Rodrigues Vianna na chegada a Porto Alegre. Naquela data, embarcaram 193 pessoas na sumaca Argelino. A família Schuster, que era a de nº 12, chegou a São Leopoldo em 17/04/1826 (Códice 333, fl. 49, linhas 37 a 42). 





Café Esquina do Tempo - Caderno de Imagens




















Autora: Janaína Cavallin


“A gente podia poder costurar o tempo, bordando em cima dos erros, para que eles sumissem. Costurar as pessoas que gostamos pertinho, costurar os domingos um mais perto do outro. Costurar o amor verdadeiro no peito de quem a gente ama. Costurar a verdade na boca dos seres. Costurar a saudade no fundo de um baú, para ela não fugir. Costurar a autoestima lá em cima, para nunca cair. Costurar o perdão na alma e a bondade na mão. Costurar o bem no bem, e o bem sobre o mal, costurar a saúde na enfermidade e a felicidade em todo lugar e ir costurando a vida, um pouquinho de esperança em cada dia e muita coragem em cada ser humano.”





Memórias de Estudante I - O Livro de Recordações



O amado Livro de Recordações


Nos tempos de Colégio, entre os Anos 1960 e 1970, havia a “febre” dos Livros de Recordações, aqueles em que as amigas e colegas escreviam pensamentos, poemas e frases, adornados com desenhos ou colagens e que, invariavelmente, eram finalizados com dedicatórias e promessas de amizade eterna... 


Numa das noites de minha infância, quando apareceu no céu a Estrela D’Alva (Vênus), emoldurada pela janela do meu quarto do nosso apartamento da Rua Riachuelo, fiz-lhe um pedido para que ela me desse de presente um destes livros. E, se não fosse pedir muito, queria um com uma capa que tivesse a aparência de madrepérola... Mas o livro não veio naquela época, senão muito tempo depois. Acho que o ganhei somente no ano seguinte, no dia de meu aniversário. 


Com o tempo, de tanto andar de mão em mão, as folhas do Livro de Recordações acabaram se despencando, e a magia do pequeno livro desapareceu repentinamente dentro do nebuloso mundo da moda estudantil... Mas houve pelo menos um substituto: o caderno de questionários, em que a gente fazia um monte de perguntas para que as amigas respondessem tim-tim por tim-tim o que lhes era questionado. Era como desafiar os limites da imaginação...


Um versinho - devaneio típico daquele tempo -, que ficou na minha memória era este:

"Dentro da noite mais densa,
Navegarei sem rumores,
Seguindo por onde fores,
Como um sonho que se pensa..."






Imagens: Internet



Memórias de Estudante I - A Música













A música acompanhou boa parte da minha vida estudantil. Foi nesta época que aprendi a tocar três instrumentos: o piano, o violão e o acordeão.





No Colégio Sévigné onde estudava eram ministradas aulas de piano num curso aberto ao público. Acho que foi no 2º ou 3º ano do Curso Primário que comecei a aprender a tocar este instrumento. Não lembro o nome da freira que me ensinava piano, mas lembro do apelido que lhe demos: “a bruxa do piano”. Coisas de criança. As aulas eram frequentadas à tarde e duas vezes por semana. Havia alunos de ambos os sexos e idades, lembrando que, naquele tempo, o Colégio era apenas aberto ao público feminino. No começo, gostava de ir às aulas. O livro de ensino era “O Método Rosa”, de Ernest Van de Velde, contendo músicas com nomes em francês. Lembro-me do “Au Clair de la Lune”, “Les Cadets de Gascogne”, “Le Carnaval de Venise”, entre outras músicas que a memória não conseguiu gravar.





Lembro-me de uma especialmente que falava de uma abelhinha (Petite Abeille Bourdonne), cuja melodia simples e singela jamais me esquecerei. Antes disso, preciso dizer que o local das aulas era num salão subdividido em pequenas salas. Eram cinco ou seis e, em cada uma delas, havia um piano. Continuando, numa tarde estava tocando na minha salinha esta música. Depois que a terminei, tendo acabado a aula, a minha mãe já me esperava do lado de fora. Foi então que ela me disse que havia ficado emocionada com a melodia que alguém estava tocando. E ficou mais comovida ainda ao saber que havia sido eu a pianista... 


A minha professora me achava uma boa aluna, mesmo sendo rígida no ensino, e não tivesse lá muita paciência. Lembro-me que, nas avaliações (acho que eram mensais), nós tínhamos que tocar na frente de todos os outros alunos. Era aterrador... Pois foi num destes exames que ela fez um comentário sobre a minha maneira de tocar piano, considerando-a como a forma mais suave dentre todo o grupo de alunos. Foi um grande elogio... É interessante comentar que, naquela época, aprendi a ler a clave de fá e a de sol (para a mão esquerda e direita respectivamente), lidas pelo pianista ao “mesmo tempo”, sendo bem diferentes entre si, com facilidade e naturalidade. Bem mais tarde, quando estudei acordeão, esta capacidade quase que desapareceu, ou seja, nunca mais fluiu como antes.


Com o passar do tempo, as aulas foram ficando monótonas. As músicas eram quase sempre as mesmas. Havia poucas partituras extras (não muito interessantes), além daqueles enfadonhos exercícios de escalas que quem estuda música conhece bem. Havia também a obrigação de tocar de olho no metrônomo, aparelho este que marca os compassos. Resumindo, eu já não tinha mais vontade de ir às aulas. Às vezes, ficava “doente” para poder faltar... Uma coisa até engraçada de lembrar foi que a freira tinha uma espécie de aparelho que servia para exercitar os dedos, no qual estes se encaixavam, fazendo um movimento dedilhado. A minha mãe, certo dia, contando que o meu irmão por causa do parto não tinha muito comando na mão direita, acabou conseguindo emprestado o tal aparelho. A freira receitou também um óleo de não sei o quê para passar na mão dele. Mas o meu irmão não gostou muito da ideia, e a mãe teve que devolver o estranho aparelho...


Foi então que a mãe descobriu uma professora de piano que dava aulas em seu apartamento, quase ao lado do nosso edifício da Rua Riachuelo. As aulas no Sévigné foram canceladas, e lá fui eu estudar com a Dona Linda. Ela era a avó da dentista Maríndia Soares, esposa do Deputado Zambiasi. O filho da Dona Linda também era dentista, mantendo um consultório no mesmo prédio. Durante certo tempo, estudei piano com ela. Diversificou o meu repertório, aprendi um pouco de teoria musical, mas não lembro se cheguei a aprender solfejo. No solfejo, com minhas humildes palavras de quem não tem muito boa memória, repassamos o aprendizado sobre a divisão dos tempos nos compassos, os tempos de cada nota dentro deles, podendo ser cantado, se a pessoa conhece bem o som das notas, ou apenas mencionando-se o nome das notas. É essencial para o estudo musical e para tocar verdadeiramente um instrumento.


Passados uns dois anos, se bem me lembro, não quis mais saber de piano. E foi encerrado o assunto. O piano é um belo instrumento. Necessita de dez a doze anos de estudo para tocá-lo bem. Não é nada prático, mas mesmo os teclados eletrônicos que existem hoje não chegam a ter a mesma magnitude daquele instrumento, embora portáteis e oferecerem inúmeros recursos. Para mim, serviu para criar sensibilidade, ampliar conhecimentos, apurar o ouvido para a música e enternecer a alma. O seu significado e o seu papel restaram assim concluídos.






Lembro-me que, depois desta fase pianística, comecei a estudar violão clássico (dito por música) e também por acompanhamento (através de acordes que é a prática comum), numa escola localizada na Rua dos Andradas, perto da Rua João Manoel. Era com um professor de violão. Não lembro mais o nome dele. O lugar era meio sombrio, e não aguentei o tranco por muito tempo. O violão por música é mais fácil de aprender do que o piano (em termos), já que para os preguiçosos a partitura só é lida na clave de sol. As músicas que o professor ensinava eram em geral muito chatas, tanto as clássicas quanto as populares.  


Depois, estudei no Instituto Musical Vienense da Prof. Sirley T. Partichelli, no período de 1967 a 1971 (dos 11 anos aos 15 anos de idade). Era uma escola situada na Rua Duque de Caxias, n.º 751, perto da Rua Bento Martins. Aliás, funcionava na própria casa da professora. Ela mudou-se posteriormente para outra casa, mais para o começo da rua. A Prof. Sirley era uma boa mestra. O ambiente era agradável, o curso era registrado na Secretaria de Educação, ou seja, com validade legal, e ficava apenas faltando para se profissionalizar fazer o exame da Ordem dos Músicos ao término do curso. Não o fiz naquela época. Ele deve ser feito quando o aluno está saindo da escola, preparado e atualizado. O meu violão era um Giannini. Fiz aulas de violão clássico (preparatório) e acompanhamento.







Foi então que comecei a estudar acordeão. Naquela época, era muito popular o instrumento. Fiz a bobagem de querer aprender. A mãe conseguiu comprar com muito custo e esforço um acordeão Scandalli de 120 baixos. Era vermelho, possuindo vários registros diferentes que possibilitavam sons semelhantes a outros instrumentos, como o clarinete. Comecei a enjoar no meio do caminho, mas a mãe endureceu e, já que havia feito o sacrifício de comprar o instrumento, eu teria que ir até o fim. Foi assim que acabei concluindo o curso em 28/12/1971, com suor, lágrimas e diplomas de Acordeão e de Teoria e Solfejo.



Diploma de Acordeão


Tocava razoavelmente bem. Aliás, eu quase não estudava em casa. Quando tinha exame, lia o que poderia cair, ou seja, familiarizava-me com as músicas, o que era muito proveitoso. Os exames consistiam em três ou quatro “pontos”, cada um incluindo músicas, escalas e solfejos diferentes. Era comum agrupar-se num só “ponto” os exercícios mais difíceis, e, muitas vezes, tive a “sorte” de pegá-los. Foi o que aconteceu, por exemplo, no meu último exame. Só não rodei, porque acho que a professora já estava farta de me ter como aluna. Afinal, era o coroamento de cinco longos anos... Lembro-me que foi um grande sufoco.


Desta forma, juntamente com o acordeão, estudei teoria musical e solfejo, coisas sobre as quais nem me lembro mais. Mas as muito básicas não esqueci. Bastaria somente rever a matéria, para que o antigo conhecimento ressurja de algum corredor sinuoso do cérebro. A Prof. Sirley, tempos depois de ter concluído o curso, mudou-se e nunca mais a vi. Guardo apenas os diplomas de Acordeão e o de Teoria e Solfejo, assim como os boletins com as notas (um deles foi assinado por meu pai). O acordeão foi vendido, mesmo porque ocupava muito espaço, e não tinha mais utilidade. Agradeço a minha mãe pelo esforço e pela dedicação em prol da minha educação musical.



O Diploma de Teoria e Solfejo


Numa visão crítica, penso que tive, na verdade, caprichos artísticos. Foram fases que acabaram sendo substituídas por outras, mas que no fundo valeram a pena. Continuei tocando violão, tirando as músicas eu mesma ou através de revistas, fazendo solos, cantando só ou acompanhada. Acho que parei quase que completamente quando ganhei a minha filha Fernanda. Faltava tempo e vontade. Lembro-me de ter cantado com ela aquela música chamada “A Chuva”. Pena que a fita gravada foi perdida... Desfiz-me do violão. Se não me engano o dei ao nosso zelador do Edifício Aldina na Rua dos Andradas. Depois disso, nunca mais toquei qualquer instrumento. Gosto muito da flauta transversal, mas este assunto não me fará entrar em outra maratona...




O distintivo que adornava a blusa do Orfeão do Colégio Sévigné



Quanto à minha aptidão “lírica”, o que fiz de mais importante na escola foi cantar no Orfeão do Colégio Sévigné. Isso aconteceu no curso primário, ou seja, entre 1963 e 1967, mas não sei precisar quando exatamente. O nosso uniforme de Orfeão era a nossa saia azul-marinho do colégio, a camisa branca, por baixo de uma espécie de blusa cavada azul-marinho, com o distintivo do Colégio que guardo até hoje, toda debruada de vermelho. Usávamos também a fita azul e vermelha do Colégio para arrematar. No teste de canto, classificaram-me como “sabiá”. O pássaro era de acordo com o tipo de voz. Havia também “canarinho” e “rouxinol”. Fazíamos apresentações no Colégio. Aliás, este tipo de coisa sempre me deixava muito nervosa. Não nasci para os palcos, embora aprecie estas manifestações artísticas dos mais corajosos.




A época dos Festivais de Música do Colégio Sévigné


Outro acontecimento, digno de lembrança, foi um Festival de Música que tivemos no Colégio Sévigné. Acredito que ocorreu entre os meus 12 e 13 anos. Naquela época, havia muitos festivais de música pela cidade. Frequentemente havia um ou outro conjunto tocando no nosso Salão de Atos. Daí que surgiu a ideia de realizar um Festival no Colégio. Os concorrentes eram do meio estudantil de vários colégios. Eu e minha amiga e colega Beth (Maria Elizabeth Coelho Noms), que éramos “unha e carne” encaramos a parada. Na verdade, quem fez a música e a letra fui eu, porque a Beth tocava pouco o violão. A música era bonita, porém sinceramente faltava nela uma segunda parte. Mas não tínhamos maturidade suficiente para entender dessas coisas. Eis a letra de “Canção de Esperança”, cuja melodia fico aqui devendo. Acho que o tom era Sol Maior:


“Nas estrelas há
Um mundo distante,
Ao contrário da Terra
Que vive e que ama,
Cujo sol ilumina a esperança,
Não sabem que a dor é perder
Um amor.
Não sei se eu
Perdi a esperança de encontrar
Aquela alegria das estrelas
Que vivem no espaço
De um eterno e pobre
Coração...”


Havia um laiá, laiá, etc., e voltava-se ao refrão a partir de “Não sei se eu...”. Ganhamos o 4º lugar do Festival. Os primeiros lugares ganharam prêmios, mas não ganhamos nada além de aplausos. Foi uma noite memorável, embora estivéssemos quase tremendo nas bases. No palco, só nós duas, ainda meninas, de vestidos curtos (o meu era azul rendado, com alguns bordados em miçangas e usava um anel de água-marinha que era da minha mãe), cantando apenas com o acompanhamento do meu violão. Os outros participantes usavam guitarras, baterias, etc. Acho que foi tudo tão singelo que por isso mesmo teve a sua beleza. Aquilo tudo nos marcou para sempre, tenho certeza...


Durante os tempos de Colégio, eu e a Beth fizemos algumas apresentações até em aula mesmo. Ela era bem afinada. Lembro-me quando cantávamos músicas como Killing Me Softly With His Song, I Will e outras dos Beatles, músicas de festivais como Viola Enluarada e O Cantador, as de tema de novela como Teletema e outras mais. Tantos hits antigos que para nós se tornaram eternos, porque marcaram uma trajetória importante do nosso passado...


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