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quinta-feira, 17 de abril de 2014

Família Schuster - A Viagem de Navio


RELATO DA 3ª VIAGEM DO NAVIO CAROLINE TRAZENDO IMIGRANTES PARA O BRASIL


A família Schuster embarcou no porto de Hamburgo com destino ao Brasil na data de 16/11/1825, no navio Caroline, com cerca de 200 passageiros, que correspondia à oitava leva de imigrantes para o Brasil. O navio Caroline fazia a sua terceira viagem com este objetivo, o qual navegou por 103 dias para chegar ao Rio de Janeiro em 26/02/1826. O capitão e também proprietário do navio chamava-se Jakob Von Der Wettern e o comandante de transporte Carl Seidler. Este navio transatlântico, como todos os navios empregados no início do século XIX para cruzarem o Oceano Atlântico, era um veleiro de três mastros. O texto a seguir relata a 3ª viagem do Caroline.


Fonte: Dez Anos no Brasil - Carl Seidler
Obs.: as fotos são apenas ilustrativas (Fonte: Internet).


“Havia três navios a partir para o Rio de Janeiro; agradou-me o Carolina, comandante von Wettern; um bonito trimastro, que calava no mar e bracejava alto nas nuvens. Acertamo-nos em 26 luíses. Misterioso e indolente, a bordo larga a flâmula de variegadas cores, ali estava também, qual tentadora sereia que faz por encantar os cavaleiros errantes, um cargueiro, atestado, no qual me prometiam passagem grátis. Mas eu conhecia o Major Schäffer, o moderno Robinson, que vendia o sangue de seus conterrâneos, à procura de um monte de ouro e de um canavial de açúcar, e que tão bem soube explorar para os seus fins egoísticos a fúria aventureira da mocidade alemã.



O Caroline parte do porto de Hamburgo em 16/11/1825


Foi Schäffer quem tosquiou (Nota do Tradutor — em alemão, há um trocadilho aí, considerando este nome escrito com um só f, que então significa pastor de ovelhas) tantas ovelhas inocentes para tecer um pelego quente para si próprio; Schäffer, o Don Quixote político que sucumbiu vergonhosamente na luta contra o moinho de vento de ideias libertárias não amadurecidas o qual, depois de viver alguns anos numa ilha deserta do Oceano Pacifico, depois de intitular-se paxá turco, qual renegado da fidelidade e da fé, depois de tentar embalde seduzir os potentados da península e da Rússia para os seus planos aventureiros de colonização, finalmente se vendeu a D. Pedro, com couro e cabelo, como a um amo adequado; Schäffer, o agenciador sem consciência, para quem palavra e assinatura não eram sagradas, Schäffer, o moderno vendedor de almas, que procurou introduzir na Alemanha, não sem êxito, em sentido oposto, o proibido tráfico de negros.


No desenrolar da narrativa há de reconhecer-se que nessa descrição não vai palavras de exagero, pois que já nesse tempo, sendo eu apenas adolescente, já julgava acertadamente o Major von Schäffer. Não me move nenhum preconceito cego, nem ódio pessoal, pois jamais estive em qualquer situação de subordinado a ele; minha entrada como oficial ao serviço imperial brasileiro, como membro duma legião alemã no novo mundo, teve lugar sem sua intervenção ou recomendação, por ordem especial de D. Pedro. A minha convicção a respeito dele nasceu num período muito posterior, e será explanada num capítulo próprio, referente ao problema da emigração e da colonização, especialmente a respeito da colônia de São Leopoldo.

 
A 16 de novembro levantamos ferros e meu coração ficou aliviado, pois meu espírito ainda não sofria enjoo do mar, nem haviam sucumbido minhas esperanças. Como uma flecha singrava a alegre Carolina, com seu peito levantado e as bordas largas, pela maré montante, qual tímida menina que o namorado persegue. Em breve estávamos na dianteira dos outros dois navios. Entretanto o vento favorável se tomara furacão; pelo menos assim me parecia, mas o capitão e os marinheiros garantiam que era apenas um temporal. No mar e de noite, um temporal sempre é algo de imponente; sem querer, pensa-se no versículo da bíblia: “O espírito estava sobre as águas”. 



O veleiro Caroline enfrenta a tempestade


É espetáculo singular a festa das bodas entre as ondas azuladas do Elba, tangidas por forte vento, e o mar do Norte. Soberbas elas, elevavam-se com silenciosa dignidade em seu vestido de noiva feito de espuma, cabeça meio inclinada de pudor, olhos chorosos aureolados dum véu de caniços, para depois, ardentes de amor, ao amplexo do amante mais forte deixarem-se cair no grande, alto e fofo leito do mar intérmino. Cada vez mais subiam as vagas, as gaivotas voavam em torno de nós com suas profecias de mau agouro, e até o prático que devíamos desembarcar em Cuxhaven temia não poder tocar em terra, com a violência do mar. É realmente de admirar a ousadia com que esses homens afrontam o elemento enraivecido apenas em seu barquinho raso com dois remos e um pedacinho de pano de vela; e não menor é a admiração que merece a perícia com que na mais violenta tempestade, submergindo e emergindo como cisnes, se tornam verdadeiros senhores livres do mar.



Cuxhaven situa-se na foz do Rio Elba e pertenceu a Hamburgo até o ano de 1937


Logo apareceu o navio do prático; baixou-se um bote preso ao navio por forte cabo e o esforço físico de dois homens o arrastou em menos de duas horas para bordo do nosso trimastro. O prático saltou para o bote e em poucos minutos os corajosos pilotos tinham alcançado o porto seguro; e nós, a todo pano, tanto quanto possível obedecendo à bússola, rumamos para a terra das esperanças e sonhos, o Brasil. A tempestade enfurecia-se cada vez mais, porém não era inconstante, e o tempo não mudava de cor; mas a sua cor era melancólica, peculiar ao inverno e às nuvens de neve quando pela primeira vez no ano vão descer com geada e gelo. Despertava o mundo de Ossian e singulares vultos de névoa perpassaram em cavalos fumegantes; a fantasia é um pássaro que voa mais depressa que o mais veloz navio.

 
A ilha de Helgoland, a Santa Helena do Mar do Norte, emergiu com suas paredes rochosas nuas, e as ondas arremessadas mais ao alto cantavam desarmonicamente as baladas de navios soçobrados, narravam as fábulas da dominação dinamarquesa e inglesa. Muito eu tinha ouvido falar de banhos de mar e prelibado o prazer de experimentar seu maravilhoso poder curativo, mas um trimastro na tempestade não é adequado a navio banhista e para um neófito do mar como eu. 



Helgoland é uma ilha alemã situada no Mar do Norte, distante duas horas de barco desde a foz do Rio Elba


Finalmente calaram-se os tubos sonoros do órgão da natureza, como que extenuados. Durante oito dias só vimos o sol, como em má câmara escura, embarcado e sem raios. O furacão recuperou as forças e tornou a moer a sua velha melodia predileta, que a todos nos tirava as vistas e o ouvido. Era uma dança divertida; a água do mar alcançava o cesto da gávea e os marinheiros agarravam-se aos cabos para não serem arrastados às ondas. Juntava-se a isto o enjoo do mar, o velho, inexorável monstro das águas, o pesadelo náutico, que não conhece compaixão nem consciência. Foi um longo sonho, horroroso, do qual despertamos pouco a pouco, uma lenta agonia, acompanhada dos símbolos da ressurreição em convulsões vomitivas. Nesses dias não sem fim tudo a bordo sonhava, enquanto o navio calado e morto, como o espectro holandês dos mares meridionais, cortava as ondas sem sinal exterior de vida.

 
Éramos quatro passageiros no camarote: dois comerciantes, o tenente Ottmer e minha pessoa. Todos moços e mais aquinhoados de esperanças do que de bens terrenos. Quatro cavaleiros errantes da moderna Távola Redonda da era da restauração alemã. Todos nós especulávamos, ou sobre paus de tinturaria, areia diamantífera ou couros, sobre a glória, felicidade militar e galantes aventuras. Mas, ai! Quando se está com enjoo do mar esquecem-se todos os sonhos, abandona-se tudo que se preza de belo e magnífico; parece que a todo o momento a alma vai escapar-se; ela se corporifica e padece fisicamente; e o espírito comercial desaparece.

 
No nono dia finalmente levantou-se a cortina de nuvens, o sol ressurgiu, e em vez de estarmos no estreito de Calais achávamo-nos a pouca distância da costa norueguesa, da qual reconhecíamos claramente os rochedos piramidais. Estabelecera-se súbita calmaria, que durou quase tanto como a precedente tempestade; o frio aumentou medonhamente e não tínhamos aquecimento no camarote. Em tais circunstâncias o navio torna-se deveras um presídio; o oceano o é a Bastilha, na qual nos tocou minguado cárcere e nossos companheiros de sofrimento têm que se tornarem nossos irmãos, pois partilham conosco as mesmas esperanças, as mesmas tribulações, o mesmo tédio, as mesmas horas de desespero e de risco. Não há sair das paredes do cárcere. A fantasmagoria só se altera com as cores cinzentas dum presente obscuro, sonolento; ainda não se conhece a sentença dos elementos, ainda não se sabe se há de viver-se nem como se morrerá.



Fiordes da Noruega


Nota da Pesquisadora - o percurso foge do que seria esperado: a passagem pelo estreito de Calais, alcançando o Canal da Mancha. O navio voltaria à rota muito tempo depois. Teria o Capitão do Caroline perdido o rumo?


O capitão, valente homem do mar com aspecto de Falstaff, ainda no Elba nos prometera que dentro de uma semana estaríamos na ilha da Madeira debaixo de bananeiras e ao chilrear dos canários, a saborear fartamente o legítimo Old Dry, que antigamente Londres conhecia. Entretanto, já contávamos dezesseis dias de mar e estávamos longe do canal como nunca. Passamos todo o mês de dezembro e o começo de janeiro sob o mais terrível frio no mar do Norte e jamais esquecerei a pequena árvore de Natal que então erguemos, com velazinhas e lentejoulas, nem da noite de São Silvestre (N. do T. — 31 de dezembro), que primeiramente celebramos com grog e canções alegres, e depois em silenciosa, sincera devoção. Só a 12 de janeiro de 1826 logramos passar o estreito de Calais; reconhecemos claramente os dois faróis que montam sentinela nas duas costas; em 36 horas estávamos outra vez em alto mar e tínhamos dado adeus à Europa, talvez para sempre. 



A localização de Calais na costa francesa e da Inglaterra na outra margem


É uma linha divisória na vida do homem, aquele dia em que vê fundir-se com o horizonte longe atrás de si a terra com suas elevações, e ele mesmo passa a ser peregrino do infindo oceano. A criação perde um elemento - o mais belo de todos - a terra verde, banhada de sol, onde foi o nosso berço, e em cujo regaço repousa o pó de nossos antepassados. Do alto da gávea o marinheiro apregoa o desaparecimento da terra; o oceano é nossa mãe amorosa! Serenamente, à luz do sol, desliza o navio para dentro de um mundo de nuvens e água, ao encontro da longínqua invisível meta: imagem da vida humana. Ainda sinto vivas as impressões que então dominaram meu coração, contudo já no outro dia eu ansiava por tornar a ver terra, montes e matas; pois a contemplação do oceano traça uma barreira firme, intransponível à fantasia, e a fantasia - centelha humana de Prometeu - é a única entidade terrena que não tolera barreiras. 


A vista do oceano é magnífica e grandiosa, como um livro luterano de orações, com bons cânticos e as bênçãos matinais e vesperais. Mas quem gostaria de lê-lo sempre? O mar tem sempre algo melancólico: com a calmaria parece um cadáver, com a tempestade uma cova hiante. Livres do enjoo do mar, este nos deixara, entretanto, um mal remanescente, a saudade — a febre paroxística da recordação. 


Finalmente, apareceram-nos as ilhas do Cabo Verde (sic), quais verdadeiras estrelas salvadoras; vimos mais de perto a de S. Antônio. Depois de tantos dias e noites, cumprimentávamos novamente pela primeira vez a terra que, com suas cadeias de montanhas subterrâneas e ramificações antediluvianas, constitui o esqueleto sólido da nossa terra firme comum. Estas ilhas são na maior parte rochedos nus, fabulosos, que tão erradamente quanta a Groenlândia (N. do T. — de “Groen”, em alemão “grün”, verde; e de land, terra) derivam seu nome verde primaveril do velho lucus a non lucendo (sic); em poucos sítios a pedra é revestida de virentes (sic) leivas, predomina o reino mineral. A vegetação é rara, mas brilhante; e a mais insignificante flor parece ao fatigado mareante incompreensível maravilha divina, que de fato é. 



O autor deve estar se referindo a Santo Antônio, uma freguesia da Ilha da Madeira


Novamente alto mar, novamente sem terra, com vento favorável, tédio e distrações, até ao cinto virginal dos dois hemisférios. Tornava-se nossa viagem cada vez mais agradável. O céu era gárrulo e o mar, com o qual estávamos agora mais conhecidos e amigos, desvendava aos nossos olhos a vida misteriosa que sua profundeza encerra. Ultimamente era meu maior prazer banhar-me no oceano e, como mergulhador ousado, fazer pequenas excursões de descobrimento no domínio dos peixes e dos corais. Certa manhã preparava-me para o mesmo, quando passa correndo por mim um marinheiro, a gritar — “Os anzóis! os anzóis!” Perguntado para que queria anzóis, respondeu-me: “Então, o Senhor não está vendo aquele bicho de lombo liso prateado? Já por duas vezes esbugalhou os olhos cá para dentro; mas vamos preparar-lhe um almoço”. Depressa me debrucei na amurada e vi, com não pequeno susto, um tubarão pelo menos de dezesseis pés de comprido, que, escoltado pelo seu piloto, chispava com as suas grandes nadadeiras brilhantes das costas e da cauda, como uma gôndola meio submersa. Não demorou que diante da garganta escancarada do bicho pendia no anzol preso a uma corda um pedaço de toucinho de duas libras; e o tubarão não apanhava a isca, porque o vento favorável premia, fortemente as nossas velas. Os fiéis pilotos (*) sempre lhe mostravam o bom caminho; isso durava horas, quando repentinamente a majestade aquática, qual Cleópatra voluptuosa, deu formidável salto de costas; alvejou a barriga no meio da espuma borbulhante, os cientes afastaram-se com ruído e a isca foi devorada. Penosamente sete homens puxaram para bordo a fera aprisionada; nosso trimastro estremecia convulsivamente com as suas rabanadas, que não cessaram enquanto não foi esquartejado a machado e seu coração arrancado do corpo. 


(*) Nota do Autor: A maioria dos meus leitores hão de conhecer já estes pilotos, presumo, da história natural ou de descrições de viagens. Entretanto, parece-me não destituído de importância acrescentar aqui algumas palavras sobre esse animal singular. Nunca vi tais peixes maiores do que de um pé a um e meio; sua cor é geralmente castanha e o dorso é raiado de faixas largas, escuras. Eles comprovam na água com especial instinto o princípio do despotismo, pois o tubarão, o tirano dos mares, o nunca saciado corsário das regiões meridionais, serve-se deles em suas expedições de rapina como de fiéis escravos e guias. O voraz tubarão é uma das rodas mestras na grande máquina de destruição e reprodução da natureza; ele devora tudo que pode abocanhar, exceto os pequenos, incansáveis pilotos, que sem serem incomodados brincam com suas respeitáveis barbas. Verdade é que estes bichinhos são muito rápidos e ágeis no nadar, entretanto seriam aos milhares vitimas de seu dominador, se este não fosse visceralmente ilimitado egoísta. Em todos os elementos a natureza é a mesma.


Era a primeira inspeção anatômica a que eu assistia. Como todos sabem, não é só o porco, mas também o tubarão amostra da constituição analítica da natureza humana; essa verdade não é muito lisonjeira, mas é evidente. O animal ainda vivia, apesar de estar com a cabeça esmigalhada e a barriga aberta; seu coração ainda pulsava quinze minutos depois de estar arrancado. Ganham em verossimilhança os milagres do galvanismo. Quando será finalmente desatado o nó górdio? Pois a história natural, em seus departamentos recônditos, é mais escura e indeterminada do que a história do mundo.

 
O herói desse pequeno episódio “da fábula dos mares”, além dos pilotos ainda trazia quatro peixes mamíferos como estimados camareiros em seu séquito, pendentes nas partes moles de seu corpo, e que não o largaram nem depois de aprisionado e condenado à morte. Nestes peixes de forma cônica e formação cônica (N. do T. — O autor tem acentuada predileção pelo jogo de palavras, de grafia igual ou quase igual) predomina a cor preta; são do tamanho do arenque e têm na parte inferior da cabeça, lisa, como um espelho, diversas aberturas polipiformes (forma de pólipos), que a tudo se atracam. 


O mar, como boa dona de casa, tem sempre provisões de tudo; há muita coisa mole e muita coisa angulosa; nunca falta um ralador. E o ralador raia e é ralado: esta é a única harmonia verdadeira da existência: cócega animal é o segredo da conjugação entre o tubarão e os peixes mamíreros (o autor usa linguagem figurada: animais sob a proteção e alimentados pelo protetor). É curioso que o tubarão com plena razão cognominado de a hiena do mar, nunca se apresenta sem seu numeroso séquito. Alguns dias depois apanhamos mais dois peixes da mesma espécie, e ainda mais outros até o equador, ao todo seis. Um deles, ainda bem novo, nós o comemos; mas achamos a carne seca e má. De gustibus non est disputandum (sic). Não precisarei acrescentar que desde a primeira dessas pescas perdi o gosto pelo banho de mar. 


A 8 de fevereiro o capitão tomou a latitude e declarou que atingíramos a linha. Fabulosamente travestidos, marinheiros penetraram logo em nosso camarote, sob a direção do contramestre, para nos felicitar a nós quatro passageiros, que ainda nenhum jamais passara a linha. Ficaram satisfeitos com a gorjeta que nos filaram; com algumas piastras espanholas compramos a dispensa do grande batizado que era celebrado no convés, com imensa galhofa, pelos anabatistas mascarados. Tal festa é demasiado conhecida para que eu a descreva de novo; é a festa do mar no mar, a páscoa de uma esperança, já semirrealizada. Como curiosos assistimos à cena. A água corria, aos baldes em cascatas e fontes; ficamos respingados pela incessante chuva a cântaros, e em breve já não éramos espectadores da comédia: então passamos a mão nos baldes e com as melhores energias pagamos o bem com o bem.

 
“Muitos gracejos, com risos de estouro! 
Soubessem-no as gerações vindouras!” 


A brincadeira continuou até as três da tarde, quando o sino tocou à refeição. Nada aí se poupou do que ainda havia de bom e belo a bordo; descerrou-se para nós uma louvada terra de sonhos da idade de ouro, em que os rios eram de mel e vinho, em que só havia lágrimas de felicidade e de recordações e em que se confirmava in facto (sic) a hipótese tanto tempo descrida da eterna mobilidade da terra. 


Semelhante dia recorda-se por longo tempo, depois de dissipada a consequente dor de cabeça; pois ele quebra a monotonia da viagem marítima, fica marcado como folhinha vermelha no calendário da nossa peregrinação terrena. Alcançou-se o equador e pensa-se que já é o termo. É que depois de longa incerteza alcançou-se uma linha que serve de gigantesco marco miliar no oceano; sabe-se agora exatamente em que altura do globo terrestre se está, a partir da qual se pode determinar em graus matemáticos a situação da pátria distante e a da próxima, desconhecida terra firme das fantasias juvenis, alcançada com tantos sacrifícios. 


Mas o homem do mar teme o equador tanto quanto o ama; pois costuma deparar aí com duradoura calmaria. Também nós aqui ficamos parados quatro dias, sem a mais leve brisa, sem a mínima onda. O único episódio desse espaço de tempo idílico foi a morte dc urna vaca, que ia de presente para o cônsul geral austríaco Scheiner. Ela se engasgara com um arenque, que o contramestre lhe dera, como panaceia contra repentinas cólicas de ventre. Muito sentimos essa perda, pois de futuro tivemos que tornar o nosso café sem leite (*).


(*) Nota do Autor - o uso do café só no fim da guerra cisplatina tornou-se regulamentar na nossa marinha de guerra; quanto ao exército, o café ainda não figurava nas tabelas de 29 de abril de 1883. Em 1827 o uso do mate chimarrão era de uso generalizado entre as tropas milicianas do Sul. 

 
Que formidável mudança rápida do extremo frio para o mais premente calor! No mês de janeiro no mar do Norte, não longe, do velho Thule, em fevereiro sobre o equador! No quinto dia suave brisa armou as velas e assim penetramos na outra metade da terra. Desde então o vento se manteve favorável e foi crescendo de intensidade à medida que nos afastávamos da linha. 


O navio Caroline chega ao seu destino


A 24 de fevereiro, pela manhã, o capitão nos deu notícia de que, se seus cálculos não falhassem, ainda hoje avistaríamos terra. Ficamos tomados de medrosa expectativa e quando às duas horas da tarde se ouviu do cesto da gávea o brado alegre de “Terras” muitos corações a bordo se alvoroçaram. De olhar firme e brilhante de alegria, todos alongavam a vista para o longínquo horizonte, transparente, a esperar com tímida impaciência o momento em que correria o reposteiro e começaria o drama da surpresa. Assim passou meia hora, que contamos minuto por minuto; eis que de repente surgem aos nossos olhos, clara e nitidamente, as elevadas cadeias de montanhas do novo mundo. Nossa alegria foi ilimitada, se bem que soubéssemos que ainda não seria para hoje a nossa chegada ao porto de destino; tínhamos, porém, o objetivo à vista; sabíamos que a criação possuía também para nós urna terra firme e podíamos erigir sobre aquelas gigantescas massas rochosas os castelos aéreos de nossas mais lindas esperanças.
 

Ao mesmo tempo avistamos diversos navios que a todo pano demandavam o porto do Rio de Janeiro, nenhum dos quais, porém, podia contar que entrasse antes da noite. Todos, silenciosamente resignados, tivemos que bordejar espera da madrugada. Foi linda a noite, fulgurante, corno em terra não se conhece; não tivemos sono; assentados ao convés, sonhávamos acordados e em conversação sem palavras interpretávamos uns aos outros os nossos sonhos de futuro. Veio a aurora; mas não nos trouxe a satisfação de nossos mais ardentes desejos. O vento rondara e vimo-nos obrigados a bordejar diante da barra todo o dia e a noite seguinte. 


Singular aventura, que aqui nos sucedeu, desviou os nossos pensamentos e cuidados para outro objeto, não muito agradável. Um navio de guerra de três mastros, que desde algumas horas fazia os maiores esforços, e bem sucedidos, para nos alcançar, por fim, com três disparos nos ordenou que hasteássemos a bandeira, O nosso capitão não quis saber disso, não respondeu à pergunta assim formulada, e indiferente continuou a velejar; mas eu bem notei que o Carolina com uma pequena mudança de direção tomou mais vento e frechou para o alto mar. A fragata inimiga seguiu-nos e içou a bandeira preta e branca de Buenos Aires. Imagine-se o nosso susto! Aquele país estava em guerra com o Brasil e estava muito em moda o corso, essa mancha de ferrugem no escudo da nossa cultura a qual tanto gostamos de alardear. Teríamos a mínima esperança de poder enfrentar honrosamente a luta contra um corsário bem guarnecido e bem artilhado? O prolongado idílio da nossa viagem pelo oceano sossegado deveria terminar em sangrenta catástrofe? Penso que na maioria não nos achávamos aptos para semelhante fim heroico. 


Sem mais demora, o Carolina apresentou-se como hamburguesa e com honesto orgulho ostentava sua bandeira. Parece que o suposto corsário refletiu; deixou visivelmente de nos perseguir e içou a bandeira francesa (N. do T. — é exato que os corsários se atreviam até a barra do Rio de Janeiro; como também é exato que de um lado e de outro não se trepidava de içar a bandeira de terceira nação. Já na campanha naval da nossa independência, o intrépido Taylor, na perseguição dos portugueses em retirada da Baía para o Tejo, usou desse expediente e em face de reclamação diplomática de Poutugal à Inglaterra teve que ser, embora só por algum tempo, dispensado dos serviços ao Brasil). Tranquilizamo-nos; mas nunca se pode saber qual fora a intenção do comandante da fragata com esse ataque simulado; apenas mais tarde tiramos a limpo que era realmente navio de guerra francês, que muito tempo esteve aqui fundeado. Evidentemente houve política, em jogo, e a política tornou-se ultimamente manto de carbonário ao ombro de anão grandiloquente: ela encobre e desculpa tudo. Fora de divida que é condenável perseguir de tal maneira navios mercantes.

 
O dia 26 de fevereiro, aos 103 dias de minha partida de Hamburgo, seria enfim o fecho da longa travessia marítima. Levantou-se vento à feição e todos os navios que estavam à espera, cujo número entrementes subira a dez, entraram pesada, mas ràpidamente, quais aves migratórias, cansadas e saudosas, na louvada meta de seus desejos. Alcançáramos o objetivo, mas o encantamento desse instante pelo qual de antemão tanto nos havíamos alegrado não se manifestou, pelo menos para nós quatro passageiros, que passáramos o Érebo para alcançar o Orcus. Mil sentimentos desencontrados enchiam-nos o coração. É que estávamos chegados ao lugar onde contávamos tirar a sorte grande na loteria duma sina funesta. A qual de nós tocaria nessa loteria um bilhete branco?... Não podíamos todos ganhar. Demais tínhamos sabido tanto do Brasil, de leitura ou de ouvir dizer; ora no-lo descreviam como a mais rica e magnífica de todas as terras, ora como a mais pobre, miserável, e quanto ao espírito de seus habitantes como a mais excomungada. Onde o ponto da verdade, no qual se tocam os dois extremos? Qual a constelação que havia de assinalar a sorte da nossa vida? Cada vez mais claras emergiam as enormes cadeias de montanhas e os penhascos da costa brasileira, apresentavam-se menos esbatidos; estávamos perto do porto do Rio de Janeiro.”



Os passageiros do Caroline chegam à Praia Grande (Niterói) - Tela de Henry Chamberlain


Nota da Pesquisadora - Os colonos que chegavam ao Rio de Janeiro ficavam alojados em galpões na Praia Grande, hoje Niterói, aguardando a viagem de ida para o sul. As viagens para Porto Alegre, por exemplo, eram feitas nos barcos de dois mastros. Aqui chegando, eram recepcionados pelo Presidente da Província de São Pedro, ficando alojados no extremo sul do porto, no prédio do Arsenal de Guerra, na proximidade da atual Usina do Gasômetro. Para o transporte até São Leopoldo, eram utilizados lanchões toldados, movidos à vela e remo. Os colonos chegavam à Feitoria do Linho-Cânhamo em carretas, estabelecimento fabril que foi desativado pelo Governo Imperial, de onde partiam para tomar posse de seus lotes.



As sumacas possuíam dois mastros e velas retangulares ou triangulares, transportando cargas e passageiros


Após alguns dias, a família Schuster embarcou na data de 23/03/1826 num barco costeiro, a sumaca de nome Argelino, rumo ao Rio Grande do Sul. Era uma pequena embarcação veleira de dois mastros. O proprietário deste costeiro era Manuel José Pereira Graça e seu capitão chamava-se Victoriano José Pereira. A passagem custava 10$000 rs e eram pagos ao Sr. Francisco Antônio Rodrigues Vianna na chegada a Porto Alegre. Naquela data, embarcaram 193 pessoas na sumaca Argelino. A família Schuster, que era a de nº 12, chegou a São Leopoldo em 17/04/1826 (Códice 333, fl. 49, linhas 37 a 42). 





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